Tratado sobre a Amizade
O Tratado sobre a Amizade foi um livro escrito pelo padre jesuíta Matteo Ricci na cidade de Nanchang, na China, no ano de 1595, tendo sido a primeira obra escrita por um ocidental em chinês.[1]
O Tratado serviu para sedimentar uma concepção positiva para os jesuítas, qualificando-os como eruditos dignos de atenção - e superando o preconceito associado a inerente natureza estrangeira. Também solidificou o modelo missionário na China, pautado pelo uso da escrita como principal meio para a difusão do cristianismo no Império chinês.[2]
Contexto
[editar | editar código-fonte]O século XVI foi importante para os europeus, pois à medida em que se intensificavam as relações comerciais com o Império do Meio, crescia também o interesse da Igreja pelas atividades missionárias naquela região. Contudo, a China imperial estava longe de ser um terreno fértil para a atividade missionária.[3]
Diferentemente dos franciscanos e dominicanos, os jesuítas dedicaram-se ao método acomodativo,[4] que baseava-se no aprendizado do idioma, bem como a total familiarização com os códigos de conduta da sociedade chinesa.
Assim, a partir da década de 1590, os jesuítas conquistaram seu espaço na China.[5] Nesta época, os missionários conseguiram estabelecer as primeiras casas de missão, saindo da esfera de Macau - principal sede no Oriente - e entrando no interior do Império chinês, no qual Ricci tivera um papel fundamental devido a suas habilidades e relações para com os funcionários da corte.[6]
Durante este período, os inacianos optaram por abandonar o estilo e as vestes dos monges budistas, pois os eruditos chineses desprezavam-nos. Passaram a adotar vestimentas, hábitos e costumes dos confucianos, que representava, majoritariamente, a elite intelectual e administrativa do Império chinês. O método utilizado pelos jesuítas permitiu “um olhar positivo sobre o Outro, reconhecendo as diferenças, buscando as semelhanças, mas mantendo-se essencialmente europeus”.[7]
Matteo Ricci, além de emular o costume e a aparência dos eruditos chineses, começou a participar ativamente das reuniões dos confucionistas. Em uma dessas reuniões, o jesuíta, em Nanchang, conseguiu relacionar-se com membros da família imperial, entre eles o príncipe de Jian’an, Zhu Duojie.
De acordo com Ricci, o príncipe o havia questionado sobre as características da amizade na Europa. O questionamento do príncipe Zhu Duojie não foi à toa. O historiador Martin Huang definiu a China do período Ming tardio como a “era de ouro da amizade”.[8] Por conseguinte, os eruditos chineses tinham debates e teorias sofisticadas sobre o tema. Ricci, com sua participação nas reuniões, pôde perceber a ênfase pela temática e apropriou-se desta para melhor se integrar na sociedade chinesa.
Já familiarizado com a doutrina confuciana e com a escrita em mandarim, este questionamento levou o inaciano a escrever o Tratado sobre a Amizade, simultaneamente nas línguas chinesa e italiana, em 1595.
Na Introdução da obra, Ricci escreve que:
[O príncipe de Jian’an] me recebeu de boa vontade, me autorizando a saudá-lo longamente com as mãos juntas. [...] O príncipe, em seguida, se aproximou e disse: “Cada vez que um cavalheiro virtuoso se digna a passar por minhas terras eu não deixo de convidá-lo e de lhe dar testemunho de minha amizade e de meu respeito. As nações do Extremo Oriente são países de grande moral. Eu ficaria feliz de ouvir algumas considerações sobre a amizade, o que o senhor acha?” Deixando-o, eu comecei a redigir o que eu sabia deste assunto desde a minha infância. Eu escrevi o opúsculo que apresento aqui com grande humildade.[9]
Objetivo da obra
[editar | editar código-fonte]O principal objetivo de Matteo Ricci ao escrever o Tratado sobre a Amizade era enfatizar a consonância entre as culturas europeia e oriental.[10]
O Tratado tinha o objetivo de elaborar o conceito de Amizade e refletia o esforço do jesuíta para que os leitores chineses pudessem conhecer melhor a sabedoria dos filósofos antigos do Ocidente, através de passagens e aforismos simples traduzidos ou parafraseados dos clássicos europeus.
A Amizade, para Ricci, é um sentimento precioso para o indivíduo e para a sociedade. Na obra, o jesuíta apresenta a Amizade como um sentimento benéfico e virtuoso que, fundada na igualdade, seria dotada de propriedades enriquecedoras, tanto em termos espirituais quanto em materiais.[11]
Influências
[editar | editar código-fonte]A principal base para escrever o Tratado foi a compilação Sententiae & Exempla, de André de Resende, servindo para ordenar a sequência de máximas da obra.[12] Além do dominicano português, destaca-se os Adágios de Erasmo de Rotterdão, no qual a primeira máxima teve influência direta nas máximas 29 e 95 [13] da obra do jesuíta, como pode-se ver a seguir:
Primeira máxima dos Adágios de Erasmo:Os amigos devem partilhar seus bens.
29
Os bens dos amigos devem ser de posse em comum.
95
Em tempos antigos existiam dois homens que andavam juntos, um extremamente pobre e outro extremamente rico. Alguém comentou: “Aqueles dois homens se tornaram amigos muito próximos”. Ao ouvir isso, um sábio retorquiu: “Se isto fosse verdade, por que um deles é rico e o outro é pobre?
No Tratado de Ricci, pode-se
identificar entre os autores gregos citados Plutarco, seguido de Aristóteles e Diógenes Laércio; entre os latinos, Cícero, vindo depois Sêneca e outros mais; dos cristãos, são principalmente Santo Agostinho e Santo Ambrósio. Pode dizer-se que é toda a sabedoria clássica ocidental que transparece nesta obra. Também o eco da literatura bíblica ressoa ao longo do livro.[12]
Sendo um dos objetivos do jesuíta enfatizar as semelhanças entre os pensamentos europeu e oriental, Ricci considerava ser o confucionismo uma filosofia baseada no direito natural, contendo a ideia do Deus cristão.
De acordo com o diretor do Centro de Estudos Chineses da Companhia de Jesus em Pequim, Roberto Mesquita Ribeiro, a estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade.[14]
O inaciano chega a conclusão de que os chineses podem se converter ao cristianismo sem abandonar a cultura e a tradição confuciana. De acordo com o próprio Ricci, o cristianismo não destrói nem abole o confucionismo, mas reforça e aperfeiçoa-o.
Apesar disso, tanto Confúcio quanto Ricci davam especial enfoque na igualdade de virtude como fundamento da Amizade. Querendo alinhar o pensamento europeu com o pensamento dos letrados chineses, o jesuíta comparou Confúcio como um outro Sêneca e os confucionistas como “uma seita epicurista, não no nome, mas nas suas leis e pareceres”.[15]
Estrutura da obra
[editar | editar código-fonte]O Tratado sobre a Amizade tinha formato e estilo similares aos livros de tradição confucionista e, por tratar-se de uma obra de fundo meditativo e não argumentativo, seguiu uma estrutura similar ao Enchiridion de Erasmo, aos Analectos de Confúcio e aos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola.[16]
O Tratado estrutura-se em 100 máximas que podem ser analisadas quantitativamente,[17] classificando-as em:
- Máximas abordando Amizade e Igualdade: 10
- Máximas abordando Relações Familiares: 03
- Máximas envolvendo explicitamente referências religiosas: 02
- Máximas que explicam como a Amizade é concebida e tratada em seu tempo: 52
- Máximas que tratam da relação entre Amizade e Virtude: 15
- Máximas que tratam da relação entre Amizade e Materialidade: 18
As máximas não apresentam nenhum ordenamento objetivo, podendo ser lidas em qualquer sequência, pois carregam em si um ensinamento autoexplicativo.
Crítica ao Confucionismo
[editar | editar código-fonte]O confucionismo prega o conceito do wu lun, no qual representa as cinco relações cardeais e hierárquicas na cultura chinesa: as relações entre súdito e soberano, pais e filhos, irmão mais velho e irmão mais novo, marido e mulher, e entre amigos.
As máximas 36 e 50, ao contrário da perspectiva do wu lun, exaltam as relações de amizade em detrimento das relações familiares. Não se sabe se a abordagem crítica de Ricci foi uma ação deliberada, mas as máximas serviram para que filósofos chineses da época discutirem o sistema organizacional da sociedade.
As sentenças podem ser vistas a seguir:
36Amigos são mais próximos que irmãos porque os amigos chamam uns aos outros de “irmãos”, enquanto que os melhores irmãos tornam-se amigos.
50
Amigos superam os membros familiares em apenas um ponto: é possível para os membros familiares não amarem uns aos outros, mas não é possível entre amigos. Se um membro familiar não ama o outro, a relação de parentesco ainda permanece. Contudo, ao menos que exista amor entre amigos, o princípio essencial de amizade existe?
Omissão de Deus e de Jesus Cristo
[editar | editar código-fonte]O método acomodativo adotado pelos jesuítas recebeu muitas críticas, principalmente por parte dos franciscanos.[18] A polêmica sobre o método de evangelização foi tão intensa que ficou conhecida como Querela dos Ritos.
Uma acusação frequente, tanto de franciscanos quanto de dominicanos, ao método dos jesuítas era a de que estes não enfatizavam firmemente a imagem de Jesus Cristo crucificado.[19] Os padres da Companhia de Jesus situados no Império chinês perceberam que a cultura chinesa buscava equilíbrio e beleza nas representações, sem nenhuma evocação de sofrimentos físicos, por isso escolheram não enfatizar a imagem dolorosa de Cristo.
Outro ponto importante para a omissão de Jesus Cristo foi que os inacianos perceberam a força da hierarquia social e do respeito entre as classes. Desse modo, a história de Jesus tornou-se problemática no contexto chinês, pois Cristo era um marginal que desafiava os valores do Império Romano e que acabou sendo torturado e morto. A imagem de Jesus poderia ser vista como uma figura subversiva aos olhos dos chineses e como um ser inferior por ter-se sujeitado à tortura física, reservada apenas às classes mais baixas da sociedade do Império do Meio.[20]
O Tratado de Ricci também passou por algumas críticas em relação a frequência do teor religioso e a questão da terminologia de Deus.
Apenas as máximas 16 e 56 referenciam diretamente Deus. Nestas sentenças, Ricci coloca a Amizade como uma bênção divina, criada para que os homens se ajudassem.
16Cada pessoa não pode completar absolutamente sozinha uma tarefa. Por esta razão o Senhor do Céu (Tianzhu) ordenou que existisse a Amizade, para que possamos ajudar uns aos outros. Se esta doutrina fosse erradicada do mundo, a humanidade certamente iria desintegrar-se em ruína.
56
O Senhor do Céu (Tianzhu) deu às pessoas dois olhos, duas orelhas, duas bocas e dois pés para que dois amigos pudessem ajudar um ao outro. Apenas desta forma os feitos podem ser completados com sucesso.
Ao utilizar o termo Senhor do Céu, Ricci buscava defender que a divindade ancestral dos chineses e o deus hebraico eram essencialmente o mesmo. Contudo, a principal preocupação entre os outros missionários era de que a terminologia Senhor do Céu poderia causar ambiguidade entre os eruditos chineses sobre a verdadeira natureza de Deus.[21]
Impacto na China imperial
[editar | editar código-fonte]O Tratado possibilitou a criação de uma imagem positiva a respeito dos jesuítas para os eruditos chineses. Em uma carta enviada para os jesuítas da Europa, em 1599, Matteo Ricci, relata o impacto positivo:
Este Tratado tem ganhado mais crédito para mim e para nossa Europa do que qualquer coisa que nós tenhamos feito, porque as outras nos dão crédito pelas coisas mecânicas e artificiais de nossas mãos e instrumentos; mas [o Tratado] nos dá crédito pela nossa literatura, astúcia e virtude.[22]
A obra fora bem aceita pelos letrados chineses, sendo incluída em coletâneas imperiais, reeditada, interpretada e apropriada de diversas maneiras, mesmo após a morte de Ricci.[23]
Li Zhi e Xu Bo, filósofos da época conhecidos por questionarem a ordem vigente, utilizaram o escrito do jesuíta para discutirem a respeito de como a ideia da partilha de bens materiais entre amigos era um ideal frequentemente não realizado pela sociedade chinesa.[24]
Na organização de uma coletânea filosófica de 1782, o editor Zhu Xi comenta sobre a obra de Ricci de maneira negativa, afirmando que a condição igualitária da Amizade proposta no Tratado, contraria as tradições ancestrais.[24] O editor escreve:
Ele [Ricci] diz: “Se duas pessoas se tornam amigas, uma não deve ser rica e a outra pobre”. Isto demonstra que ele entende “o direito de partilhar riqueza”, mas não entende os ritos ancestrais: somente aqueles que estão de luto dividem sua riqueza; isto não se aplica a todos os amigos. Dividir sua riqueza assim que se tornam amigos um do outro faria o rico amar sem distinções, e os pobres se unirem por lucro. Como isto poderia ser o ensinamento da Doutrina do Meio?[25]
Referências
[editar | editar código-fonte]- ↑ GODINHO, 2017, p. 5 apud RONG, Hengying. O Tratado de Amizade de Matteo Ricci: Da amizade universal à amizade no Céu. In: Comunnio. Revista Internacional Católica , ano XXX, n.3, 2013, p.313-324.
- ↑ REGO, 2012, p. 139.
- ↑ PALAZZO, 2017, p. 2.
- ↑ Na sociologia, o termo acomodação designa um processo social (e psicológico) associativo que tem como objetivo diminuir o conflito entre diferentes indivíduos ou grupos ou encontrando um novo modus vivendi.
- ↑ REGO, 2012, p. 112.
- ↑ PALAZZO, 2017, p.2
- ↑ PALAZZO, 2017, p. 3.
- ↑ REGO, 2012, p. 124.
- ↑ PALAZZO, 2017, p. 9-10.
- ↑ REGO, 2012, p. 137.
- ↑ REGO, 2012, p. 123-124.
- ↑ a b GODINHO, 2017, p. 16.
- ↑ REGO, 2012, p. 122.
- ↑ RIBEIRO, 2010, p. 31.
- ↑ GODINHO, 2017, p. 20.
- ↑ REGO, 2012, p. 123.
- ↑ REGO, 2012, p. 122-123.
- ↑ PALAZZO, 2017, p. 5.
- ↑ PALAZZO, 2017, p. 6.
- ↑ REGO, 2012, p. 143.
- ↑ ALMEIDA, 2017, p. 206.
- ↑ REGO, 2012, p. 116.
- ↑ REGO, 2012, p. 114.
- ↑ a b REGO, 2012, p. 126-127.
- ↑ REGO, 2012, p. 128.
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- ALMEIDA, Anna Luisa Souza de. O encontro entre a cruz e o dragão: a missão jesuítica na China Imperial (1579-1773). Cadernos de História UFPE, Pernambuco, v. 12, n. 12, 2017.
- GODINHO, Paulo Reis. O Tratado da Amizade de Mateo Ricci: modelo de missionação inculturada. Lisboa: Universidade Aberta, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/35290044/O_TRATADO_DA_AMIZADE_DE_MATEO_RICCI_MODELO_DE_MISSIONA%C3%87%C3%83O_INCULTURADA.
- MIGNINI, Filippo. Introduzione In: RICCI, Matteo. Dell’amicizia . A cura di Filippo Mignini. Quodlibet, 2009.
- PALAZZO, Carmen Lícia. Matteo Ricci: um jesuíta ao encontro de Confúcio. In: Anais XXIX Simpósio Nacional de História, 2017, Brasília.
- REGO, Luiz Felipe Urbieta. A China dos Jesuítas: o Tratado da Amizade de Matteo Ricci e sua contribuição para o diálogo cultural entre Oriente e Ocidente. 2012. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História, PUC-Rio. Rio de Janeiro.
- RIBEIRO, Roberto Mesquita. Uma missão sob o signo da amizade. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ed. 347, 2010. p. 31-33.